Um dia a menos
"Eu desconfio que a morte vem. Morte?
Será que uma vez os tão longos dias terminem?
Assim devaneio calma, quieta. Será que a morte é um blefe?
Um truque da vida? É perseguição?
E assim é.
O dia começa às quatro da manhã, sempre acordara cedo, já encontrando na pequena copa a garrafa térmica cheia de café. Tomou uma xícara morna e lá ia deixá-la para Augusta lavar, quando se lembrou que a velha Augusta pedira licença por um mês para ver seu filho.
Teve preguiça do longo dia que se seguira: nenhum compromisso, nenhum dever, nem alegrias nem tristezas. Sentou-se, pois, com o robe de chambre mais velho, já que nunca esperava visitas. Mas estar tão mal vestida _ roupa ainda da falecida mãe _ não lhe agradava. Levantou-se e vestiu um pijama de sedinha de bolas azuis e brancas que Augusta lhe dera no seu último aniversário. Isso realmente melhorava. E melhorou ainda mais quando sentou na poltrona recém-forrada de roxo (gosto de Augusta) e acendeu o primeiro cigarro do dia. Era um cigarro de marca cara, desse fumo louro, cigarrilha estreita e comprida, qualidade social de uma pessoa que não era por acaso ela. Aliás, por mero acaso, não era muitas coisas. E por mero acaso havia nascido.
E depois?
Depois.
Depois.
Pois então.
Assim mesmo.
Não é?
Então, revelou-se subitamente: então pois então era assim mesmo. Augusta lhe contara que havia melhoria depois. Assim mesmo havia já chegado de assim era.
Lembrou do jornal por assinatura à sua porta de entrada. Lá foi meio animada, nunca se sabe o que se vai ler, se o ministro da Indochina vai se matar ou o amante ameaçado pelo pai da noiva termina se casando.
Mas lá não estava o jornal: o diabrete do vizinho inimigo já devia ter carregado com ele. Era uma luta constante a de ver quem chegava primeiro ao jornal que, no entanto, tinha claramente impresso seu nome: Margarida Flores. Além do endereço. Sempre que distraidamente via seu nome escrito lembrava-se de seu apelido na escola primária: Margarida Flores de Enterro. Por que alguém não se lembrava de apelidá-la de Margarida Flores de Jardim? É que simplesmente as coisas não eram do seu lado. Pensou uma bobagem, até sua pequena cara era de lado. Em esquina. Nem pensava se era bonita ou feia. Ela era óbvia.
Depois.
Depois não tinha problemas de dinheiro.
Depois havia o telefone. Telefonaria para alguém? Mas sempre que telefonava tinha a impressão nítida que estava sendo importuna. Por exemplo, interrompendo um abraço sexual. Ou então era importuna por falta de assunto.
E se alguém lhe telefonasse? Iria ter que conter o trêmulo da voz por alguém enfim chamá-la. Supôs o seguinte:
-Trim-trim-trim.
-Alô? Sim?
-É Margarida Flores de Jardim?
Diante da voz tão macia, responderia:
-Margarida Flores de Bosques Floridos!
E a cantante voz a convidaria pra tomarem chá de tarde na Confeitaria Colombo. Lembrou-se a tempo que hoje em dia um homem não convidava para tomar chá com torradas e sim para um drinque. O que já complicaria as coisas: para um drinque se deveria ir na certa vestida de modo mais audacioso, mais misterioso, mas pessoal, mais... Ela não era muito pessoal. E que incomodava um pouco, não muito.
E, além do mais, o telefone não tocou.
Depois. Era o que via quando se via no espelho. Raramente se via ao espelho, como se já se conhecesse muito. E ela comia muito, Era gorda e sua gordura extremamente pálida e flácida.
Depois resolveu arrumar a gaveta das calcinhas e sutiãs: ela era exatamente do tipo que arrumava gavetas de calcinhas e sutiãs, sentia-se bem na delicada tarefa. E se fosse casada, o marido teria em perfeita ordem a fileira das gravatas, segundo a gradação de cor, ou segundo... Segundo qualquer coisa. Pois sempre há alguma coisa pela qual se guiar e arrumar. Quanto a ela mesma, ela se guiava pelo fato de não ser casada, de ter a mesma empregada desde que nascera, de ser uma mulher de trinta anos de idade, pouco batom, roupa pálida... e que mais? Evitou depressa “o que mais” pois a essa pergunta cairia num sentimento muito egoísta e ingrato: sentir-se-ia só, o que era pecado porque quem tem Deus nunca está só. Tinha Deus, pois não era a única que o tinha? Fora Augusta.
Então foi tomar um banho que lhe deu tanto prazer que não pôde impedir de pensar como seriam outros prazeres corpóreos. Ser virgem aos trinta anos, não tinha jeito, a menos que fosse violentada por um marginal. Acabados o banho e os pensamentos, talco, talco, talco. E quantos e quantos desodorantes: duvidava que alguém no Rio de Janeiro cheirasse menos que ela. Talvez fosse a mais inodora das criaturas. E do banheiro saiu a modo de dizer em leve minueto.
Depois.
Depois viu com grande satisfação no relógio da cozinha, já eram onze horas da manhã... Como o tempo passara depressa desde quatro da madrugada. Que dádiva o tempo passar. Enquanto esquentava a galinha esbranquiçada e pelenta do jantar, ligou o rádio e pegou um homem no meio de um pensamento: “flauta e viola”... disse o homem e de repente ela não agüentou e desligou o rádio. Como se “flauta e viola” fossem na realidade o seu secreto, ambicionado e inalcançável modo de ser. Teve coragem e disse baixinho: flauta e viola.
Desligado o rádio e sobretudo o pensamento, os quartos caíram num silêncio: como se alguém em alguma parte acabasse de morrer e... Mas felizmente havia o barulho da frigideira esquentando os pedaços de galinha que, quem sabe, ganhariam alguma cor e sabor. Pôs-se a comer. Mas logo percebeu seu erro: tendo tirado a galinha da geladeira e só a esquentando um pouco, havia trechos em que a gordura era gelatinosa e fria, e outros em que era queimada e esturricada.
Sim.
E a sobremesa? Requentou um pouco de café da manhã e temperou-o com amarga sacarina para jamais engordar. Seu orgulho seria ser quase mirradinha.
Depois.
Lembrou-se a troco de nada das milhões de pessoas com fome, na sua terra e nas outras terras. Iria sentir um mal-estar todas as vezes em que comesse.
Depois.
Depois! Como havia esquecido a televisão? Ah, sem Augusta ela esquecia-se de tudo. Ligou-a toda esperançosa. Mas a essa hora só dava filmes antigos de faroeste entremeadíssimos com anúncios sobre cebolas, modess, groselhas que deveriam ser boas mas engordativas. Ficou olhando. Resolver acender um cigarro. Isso melhoria tudo pois faria dela um quadro numa exposição: Mulher Fumando Diante de Televisão. Só depois de muito tempo percebeu que nem sequer olhava a televisão e só fazia mesmo era gastar eletricidade. Torceu o botão com alívio.
Depois.
Depois?
Depois resolveu ler revistas velhas, há muito tempo que não o fazia. Estavam amontoadas no quarto da mãe, desde a sua morte. Mas eram um pouco antigas demais, algumas do tempo de solteira da mãe, as modas eram outras, os homens todos tinham bigodes, anúncio de cinta para afinar cintura. E sobretudo todos os homens usavam bigodes. Fechou-se, de novo sem coragem de jogá-las fora jpa que haviam pertencido à mãe.
Depois.
Sim e depois?
Depois de foi ferver água para tomar chá, enquanto ela não esquecia que o telefone não tocava. Se ao menos tivesse colegas de trabalho, mas não tinha trabalho: a pensão do pai de da mãe supria suas poucas necessidades. Além do que não tinha letra bonita e achava que sem ter letra bonita não aceitavam candidatos.
Tomou o chá fervendo, mastigando pequenas torradas secas que arranhavam as gengivas. Melhorariam com um pouco de manteiga. Mas, é claro, manteiga engordava, além de aumentar o colesterol, o que quer que signifique essa palavra moderna.
Quando ia partinho com os dentes a terceira torrada – ela costumava contar as coisas, por uma espécie de mania de ordem, afinal inócua e até divertida -, quando ia comer a terceira torrada...
ACONTECEU! Juro, se disse ela, juro que ouvi o telefone tocar. Cuspiu na toalha o pedaço da terceira torrada e, para não dar a entender que era uma precipitada ou uma necessitada, deixou-o tocar quatro vezes, e cada vez era uma dor aguda no coração pois poderiam desligar pensando que não havia ninguém em casa! A esse pensamento terrificante precipitou-se de súbito nessa mesma quarta chamada e conseguiu dizer com voz bem negligente:
-Alô...
-Por obséquio – disse a voz feminina que devia ter mais de oitenta anos a julgar pela rouquidão arrastada – por favor pode chamar ao aparelho (ninguém dizia mais “aparelho”) para mim a Flávia? Meu nome é Constança.
- Madame Constança, sinto lhe informar que nesta casa não vive ninguém com o nome de Flávia, sei que Flávia é um nome muito romântico, mas é que não tem aqui nenhuma, que é que eu posso fazer? -disse com certo desespero por causa da voz de comando de Madame Constança.
-Mas essa não é a rua General Isidro? Isso piorou a questão. -É, sim, mas que número de telefone pediu? O quê? O meu? Mas lhe asseguro que moro aqui há exatamente trinta nos, quando nasci, e nunca houve nesta casa nenhuma jovem chamada Flávia!
-Jovem, coisa alguma, Flávia é um ano mais velha que eu e se esconde a idade isso é problema dela!
-Talvez não esconda a idade, quem sabe, Madame Constança.
-Que esconde, lá isso esconde, mas pelo menos faça-me o favor de lhe dizer que atenda logo o aparelho e já!
-Eu... eu... eu estava tentando lhe dizer que nossa família foi a primeira e única moradora desta casinha e lhe afianço, juro por Deus, que nunca morou aqui nenhuma senhora Flávia, e não estou dizendo que a senhora Flávia não existe, mas aqui, minha senhora, aqui -não e-x-i-s-t-e...
-Deixe de ser grosseira, sua sirigaita! Aliás como é o seu nome?
-Margarida Flores do Jardim.
-Por quê? Há flores no jardim?
-Ah, ah, ah, a senhora tem bom humor! Não, não há, flores no jardim mas é que meu nome é florido.
-E isso adianta alguma coisa?
Silêncio.
-Adianta ou não adianta, enfim?
-É que não sei responder porque nunca tinha antes pensado nisso. Só sei responder coisas que já pensei.
-Então faça uma forcinha e mentalize o nome de Flávia e verá que saberá responder.
-Estou mentalizando, estou mentalizando... Ah, encontrei! O nome de minha empregada de criação é Augusta!
-Mas, criatura de Deus, estou perdendo a paciência, não é de empregada de criação que quero, é Flá-vi-a!
-Não quero parecer grosseira, mas minha mãe sempre disse que as pessoas insistentes são mal-educadas, desculpe!
-Mal-educada? Eu? Criada em Paris e Londres? Você ao menos sabe francês ou inglês, só para praticarmos um pouco?
-Só falo a língua do Brasil, minha senhora, e creio que é tempo da senhora desligar porque a essa hora meu chá deve estar gelado.
-Chá às três horas da tarde? Bem se vê que você não tem a mínima classe, e eu a pensar que você pudesse ter estudado na Inglaterra e que soubesse pelo menos a que horas se toma chá!
-O chá é porque eu não tinha o que fazer... Madame Constança. E agora eu lhe imploro em nome de Deus que não me torture mais, imploro de joelhos que desligue o telefone para eu acabar de tomar meu chá brasileiro.
-É, mas não precisa choramingar por isso, Dona Flores, minha única e pura intenção era falar com Flávia para convidá-la para um joguinho de bridge. Ah! Tive uma idéia! Já que Flávia saiu, por que é que você não vem à minha casa para umas carteadas a dinheiro baixo? Hein? Que acha? Não se sente tentada? E que acha de distrair uma senhora já de certa idade?
-Meu Deus, não sei jogar jogo nenhum.
-Mas como não!?
-É isso mesmo. É como não.
-E a que se deve essa falha na sua educação?
-Meu pai era estrito: na sua casa não entravam vícios de baralho.
-Seu pai, sua mãe e Augusta eram muito antiquados, se me permite dizer e acho que...
-Não! Não lhe permito dizer! E quem vai desligar o telefone sou eu mesma, com licença de sua madame.
Enxugando os olhos, sentiu-se por um instante aliviada e teve uma idéia tão nova que nem parecia dela: parecia demoníaca como as idéias da madarne... Era tirar o telefone do gancho para que, se a Madame Constança fosse constante como o seu nome, não tornasse a ligar para chamar a desgraçada Flávia. Assoou o nariz. Ah, se não tivesse bons costumes, o que não diria à tal da Constança! Até já escava arrependida do que não lhe dissera por ter bons costumes.
Sim. O chá escava gelado.
E com gosto acentuado de sacarina. A terceira torradinha cuspida na coalha da mesa. A tarde estragada. Ou o dia estragado? Ou a vida estragada? Nunca se detivera para pensar se era ou não feliz. Então, em vez de chá, comeu uma banana um pouco ácida.
Depois.
Depois. Depois eram quatro horas.
Depois cinco.
Seis.
Sete: hora do jantar!
Gostaria de comer outra coisa e não a galinha de ontem mas aprendera a não desperdiçar comida. Comeu uma coxa ressequida com torradinhas. Para falar a verdade. não tinha fome. Só às vezes se animava com Augusta porque falavam, falavam e comiam, ah, comiam fora da dieta e nem engordavam! Mas Augusta ia se ausentar um mês. Um mês é uma vida.
Oito horas. Já podia se deitar. Escovou os dentes durante muito tempo, pensativa. Vestiu uma camisola rasgadinha de algodão meio puído, daqueles gostosos, ainda das feitas pela mãe. E entrou na cama, sob as cobertas.
De olhos abertos.
De olhos abertos.
De olhos abertos.
Foi então que pensou nos vidros de pílulas contra insônia que haviam pertencido à mãe. Lembrou-se de seu pai: cuidado, Leontina, com a dose, uma dose a mais pode ser fatal. Eu, respondia Leontina, não quero largar esta boa vida tão cedo, e só tomo duas pilulazinhas, o suficiente para ter um sono tranqüilo e acordar toda rosada para meu maridinho.
Isso, pensou Margarida das Flores de Jardim, dormir um bom soninho e acordar rosada. Foi ao quarto de sua mãe, abriu uma gaveta do lado esquerdo da grande cama de casal – e realmente encontrou três vidros cheios de bolinhas. Ia tomar duas pílulas para amanhecer rosada. Não tinha nenhuma má intenção. Foi buscar a jarra e um copo. Abriu um dos vidros: tirou duas das pequenas pílulas. Tinha gosto de mofo e açúcar. Não notava em si a menor má intenção. Mas ninguém no mundo saberá. E agora para sempre não saberá julgar se foi por desequilíbrio ou enfim por um grande equilíbrio: copo após copo engoliu todas as pílulas dos três grandes vidros. Mas no segundo vidro pensou pela primeira vez na vida: “Eu”. E não era um simples ensaio: era na verdade um estréia. Toda ela enfim estreava. E antes mesmo que terminassem, já sentia uma coisa nas pernas, tão boa quanto nunca antes sentira. Ela nem sabia que era domingo. Não teve força para ir para o seu próprio quarto: deixou-se cair de través na cama onde a tinham gerado. Era um dia a menos. Vagamente pensou: se pelo menos Augusta tivesse deixado pronta uma torta de framboesa."
Clarice Lispector, 1977.
Meu pai queria um nome com A. Pensou Anastácia.
Minha mãe disse não.
Nome feio pra criança!
Mas quanto tempo na vida se passa criança?
Será que uma vez os tão longos dias terminem?
Assim devaneio calma, quieta. Será que a morte é um blefe?
Um truque da vida? É perseguição?
E assim é.
O dia começa às quatro da manhã, sempre acordara cedo, já encontrando na pequena copa a garrafa térmica cheia de café. Tomou uma xícara morna e lá ia deixá-la para Augusta lavar, quando se lembrou que a velha Augusta pedira licença por um mês para ver seu filho.
Teve preguiça do longo dia que se seguira: nenhum compromisso, nenhum dever, nem alegrias nem tristezas. Sentou-se, pois, com o robe de chambre mais velho, já que nunca esperava visitas. Mas estar tão mal vestida _ roupa ainda da falecida mãe _ não lhe agradava. Levantou-se e vestiu um pijama de sedinha de bolas azuis e brancas que Augusta lhe dera no seu último aniversário. Isso realmente melhorava. E melhorou ainda mais quando sentou na poltrona recém-forrada de roxo (gosto de Augusta) e acendeu o primeiro cigarro do dia. Era um cigarro de marca cara, desse fumo louro, cigarrilha estreita e comprida, qualidade social de uma pessoa que não era por acaso ela. Aliás, por mero acaso, não era muitas coisas. E por mero acaso havia nascido.
E depois?
Depois.
Depois.
Pois então.
Assim mesmo.
Não é?
Então, revelou-se subitamente: então pois então era assim mesmo. Augusta lhe contara que havia melhoria depois. Assim mesmo havia já chegado de assim era.
Lembrou do jornal por assinatura à sua porta de entrada. Lá foi meio animada, nunca se sabe o que se vai ler, se o ministro da Indochina vai se matar ou o amante ameaçado pelo pai da noiva termina se casando.
Mas lá não estava o jornal: o diabrete do vizinho inimigo já devia ter carregado com ele. Era uma luta constante a de ver quem chegava primeiro ao jornal que, no entanto, tinha claramente impresso seu nome: Margarida Flores. Além do endereço. Sempre que distraidamente via seu nome escrito lembrava-se de seu apelido na escola primária: Margarida Flores de Enterro. Por que alguém não se lembrava de apelidá-la de Margarida Flores de Jardim? É que simplesmente as coisas não eram do seu lado. Pensou uma bobagem, até sua pequena cara era de lado. Em esquina. Nem pensava se era bonita ou feia. Ela era óbvia.
Depois.
Depois não tinha problemas de dinheiro.
Depois havia o telefone. Telefonaria para alguém? Mas sempre que telefonava tinha a impressão nítida que estava sendo importuna. Por exemplo, interrompendo um abraço sexual. Ou então era importuna por falta de assunto.
E se alguém lhe telefonasse? Iria ter que conter o trêmulo da voz por alguém enfim chamá-la. Supôs o seguinte:
-Trim-trim-trim.
-Alô? Sim?
-É Margarida Flores de Jardim?
Diante da voz tão macia, responderia:
-Margarida Flores de Bosques Floridos!
E a cantante voz a convidaria pra tomarem chá de tarde na Confeitaria Colombo. Lembrou-se a tempo que hoje em dia um homem não convidava para tomar chá com torradas e sim para um drinque. O que já complicaria as coisas: para um drinque se deveria ir na certa vestida de modo mais audacioso, mais misterioso, mas pessoal, mais... Ela não era muito pessoal. E que incomodava um pouco, não muito.
E, além do mais, o telefone não tocou.
Depois. Era o que via quando se via no espelho. Raramente se via ao espelho, como se já se conhecesse muito. E ela comia muito, Era gorda e sua gordura extremamente pálida e flácida.
Depois resolveu arrumar a gaveta das calcinhas e sutiãs: ela era exatamente do tipo que arrumava gavetas de calcinhas e sutiãs, sentia-se bem na delicada tarefa. E se fosse casada, o marido teria em perfeita ordem a fileira das gravatas, segundo a gradação de cor, ou segundo... Segundo qualquer coisa. Pois sempre há alguma coisa pela qual se guiar e arrumar. Quanto a ela mesma, ela se guiava pelo fato de não ser casada, de ter a mesma empregada desde que nascera, de ser uma mulher de trinta anos de idade, pouco batom, roupa pálida... e que mais? Evitou depressa “o que mais” pois a essa pergunta cairia num sentimento muito egoísta e ingrato: sentir-se-ia só, o que era pecado porque quem tem Deus nunca está só. Tinha Deus, pois não era a única que o tinha? Fora Augusta.
Então foi tomar um banho que lhe deu tanto prazer que não pôde impedir de pensar como seriam outros prazeres corpóreos. Ser virgem aos trinta anos, não tinha jeito, a menos que fosse violentada por um marginal. Acabados o banho e os pensamentos, talco, talco, talco. E quantos e quantos desodorantes: duvidava que alguém no Rio de Janeiro cheirasse menos que ela. Talvez fosse a mais inodora das criaturas. E do banheiro saiu a modo de dizer em leve minueto.
Depois.
Depois viu com grande satisfação no relógio da cozinha, já eram onze horas da manhã... Como o tempo passara depressa desde quatro da madrugada. Que dádiva o tempo passar. Enquanto esquentava a galinha esbranquiçada e pelenta do jantar, ligou o rádio e pegou um homem no meio de um pensamento: “flauta e viola”... disse o homem e de repente ela não agüentou e desligou o rádio. Como se “flauta e viola” fossem na realidade o seu secreto, ambicionado e inalcançável modo de ser. Teve coragem e disse baixinho: flauta e viola.
Desligado o rádio e sobretudo o pensamento, os quartos caíram num silêncio: como se alguém em alguma parte acabasse de morrer e... Mas felizmente havia o barulho da frigideira esquentando os pedaços de galinha que, quem sabe, ganhariam alguma cor e sabor. Pôs-se a comer. Mas logo percebeu seu erro: tendo tirado a galinha da geladeira e só a esquentando um pouco, havia trechos em que a gordura era gelatinosa e fria, e outros em que era queimada e esturricada.
Sim.
E a sobremesa? Requentou um pouco de café da manhã e temperou-o com amarga sacarina para jamais engordar. Seu orgulho seria ser quase mirradinha.
Depois.
Lembrou-se a troco de nada das milhões de pessoas com fome, na sua terra e nas outras terras. Iria sentir um mal-estar todas as vezes em que comesse.
Depois.
Depois! Como havia esquecido a televisão? Ah, sem Augusta ela esquecia-se de tudo. Ligou-a toda esperançosa. Mas a essa hora só dava filmes antigos de faroeste entremeadíssimos com anúncios sobre cebolas, modess, groselhas que deveriam ser boas mas engordativas. Ficou olhando. Resolver acender um cigarro. Isso melhoria tudo pois faria dela um quadro numa exposição: Mulher Fumando Diante de Televisão. Só depois de muito tempo percebeu que nem sequer olhava a televisão e só fazia mesmo era gastar eletricidade. Torceu o botão com alívio.
Depois.
Depois?
Depois resolveu ler revistas velhas, há muito tempo que não o fazia. Estavam amontoadas no quarto da mãe, desde a sua morte. Mas eram um pouco antigas demais, algumas do tempo de solteira da mãe, as modas eram outras, os homens todos tinham bigodes, anúncio de cinta para afinar cintura. E sobretudo todos os homens usavam bigodes. Fechou-se, de novo sem coragem de jogá-las fora jpa que haviam pertencido à mãe.
Depois.
Sim e depois?
Depois de foi ferver água para tomar chá, enquanto ela não esquecia que o telefone não tocava. Se ao menos tivesse colegas de trabalho, mas não tinha trabalho: a pensão do pai de da mãe supria suas poucas necessidades. Além do que não tinha letra bonita e achava que sem ter letra bonita não aceitavam candidatos.
Tomou o chá fervendo, mastigando pequenas torradas secas que arranhavam as gengivas. Melhorariam com um pouco de manteiga. Mas, é claro, manteiga engordava, além de aumentar o colesterol, o que quer que signifique essa palavra moderna.
Quando ia partinho com os dentes a terceira torrada – ela costumava contar as coisas, por uma espécie de mania de ordem, afinal inócua e até divertida -, quando ia comer a terceira torrada...
ACONTECEU! Juro, se disse ela, juro que ouvi o telefone tocar. Cuspiu na toalha o pedaço da terceira torrada e, para não dar a entender que era uma precipitada ou uma necessitada, deixou-o tocar quatro vezes, e cada vez era uma dor aguda no coração pois poderiam desligar pensando que não havia ninguém em casa! A esse pensamento terrificante precipitou-se de súbito nessa mesma quarta chamada e conseguiu dizer com voz bem negligente:
-Alô...
-Por obséquio – disse a voz feminina que devia ter mais de oitenta anos a julgar pela rouquidão arrastada – por favor pode chamar ao aparelho (ninguém dizia mais “aparelho”) para mim a Flávia? Meu nome é Constança.
- Madame Constança, sinto lhe informar que nesta casa não vive ninguém com o nome de Flávia, sei que Flávia é um nome muito romântico, mas é que não tem aqui nenhuma, que é que eu posso fazer? -disse com certo desespero por causa da voz de comando de Madame Constança.
-Mas essa não é a rua General Isidro? Isso piorou a questão. -É, sim, mas que número de telefone pediu? O quê? O meu? Mas lhe asseguro que moro aqui há exatamente trinta nos, quando nasci, e nunca houve nesta casa nenhuma jovem chamada Flávia!
-Jovem, coisa alguma, Flávia é um ano mais velha que eu e se esconde a idade isso é problema dela!
-Talvez não esconda a idade, quem sabe, Madame Constança.
-Que esconde, lá isso esconde, mas pelo menos faça-me o favor de lhe dizer que atenda logo o aparelho e já!
-Eu... eu... eu estava tentando lhe dizer que nossa família foi a primeira e única moradora desta casinha e lhe afianço, juro por Deus, que nunca morou aqui nenhuma senhora Flávia, e não estou dizendo que a senhora Flávia não existe, mas aqui, minha senhora, aqui -não e-x-i-s-t-e...
-Deixe de ser grosseira, sua sirigaita! Aliás como é o seu nome?
-Margarida Flores do Jardim.
-Por quê? Há flores no jardim?
-Ah, ah, ah, a senhora tem bom humor! Não, não há, flores no jardim mas é que meu nome é florido.
-E isso adianta alguma coisa?
Silêncio.
-Adianta ou não adianta, enfim?
-É que não sei responder porque nunca tinha antes pensado nisso. Só sei responder coisas que já pensei.
-Então faça uma forcinha e mentalize o nome de Flávia e verá que saberá responder.
-Estou mentalizando, estou mentalizando... Ah, encontrei! O nome de minha empregada de criação é Augusta!
-Mas, criatura de Deus, estou perdendo a paciência, não é de empregada de criação que quero, é Flá-vi-a!
-Não quero parecer grosseira, mas minha mãe sempre disse que as pessoas insistentes são mal-educadas, desculpe!
-Mal-educada? Eu? Criada em Paris e Londres? Você ao menos sabe francês ou inglês, só para praticarmos um pouco?
-Só falo a língua do Brasil, minha senhora, e creio que é tempo da senhora desligar porque a essa hora meu chá deve estar gelado.
-Chá às três horas da tarde? Bem se vê que você não tem a mínima classe, e eu a pensar que você pudesse ter estudado na Inglaterra e que soubesse pelo menos a que horas se toma chá!
-O chá é porque eu não tinha o que fazer... Madame Constança. E agora eu lhe imploro em nome de Deus que não me torture mais, imploro de joelhos que desligue o telefone para eu acabar de tomar meu chá brasileiro.
-É, mas não precisa choramingar por isso, Dona Flores, minha única e pura intenção era falar com Flávia para convidá-la para um joguinho de bridge. Ah! Tive uma idéia! Já que Flávia saiu, por que é que você não vem à minha casa para umas carteadas a dinheiro baixo? Hein? Que acha? Não se sente tentada? E que acha de distrair uma senhora já de certa idade?
-Meu Deus, não sei jogar jogo nenhum.
-Mas como não!?
-É isso mesmo. É como não.
-E a que se deve essa falha na sua educação?
-Meu pai era estrito: na sua casa não entravam vícios de baralho.
-Seu pai, sua mãe e Augusta eram muito antiquados, se me permite dizer e acho que...
-Não! Não lhe permito dizer! E quem vai desligar o telefone sou eu mesma, com licença de sua madame.
Enxugando os olhos, sentiu-se por um instante aliviada e teve uma idéia tão nova que nem parecia dela: parecia demoníaca como as idéias da madarne... Era tirar o telefone do gancho para que, se a Madame Constança fosse constante como o seu nome, não tornasse a ligar para chamar a desgraçada Flávia. Assoou o nariz. Ah, se não tivesse bons costumes, o que não diria à tal da Constança! Até já escava arrependida do que não lhe dissera por ter bons costumes.
Sim. O chá escava gelado.
E com gosto acentuado de sacarina. A terceira torradinha cuspida na coalha da mesa. A tarde estragada. Ou o dia estragado? Ou a vida estragada? Nunca se detivera para pensar se era ou não feliz. Então, em vez de chá, comeu uma banana um pouco ácida.
Depois.
Depois. Depois eram quatro horas.
Depois cinco.
Seis.
Sete: hora do jantar!
Gostaria de comer outra coisa e não a galinha de ontem mas aprendera a não desperdiçar comida. Comeu uma coxa ressequida com torradinhas. Para falar a verdade. não tinha fome. Só às vezes se animava com Augusta porque falavam, falavam e comiam, ah, comiam fora da dieta e nem engordavam! Mas Augusta ia se ausentar um mês. Um mês é uma vida.
Oito horas. Já podia se deitar. Escovou os dentes durante muito tempo, pensativa. Vestiu uma camisola rasgadinha de algodão meio puído, daqueles gostosos, ainda das feitas pela mãe. E entrou na cama, sob as cobertas.
De olhos abertos.
De olhos abertos.
De olhos abertos.
Foi então que pensou nos vidros de pílulas contra insônia que haviam pertencido à mãe. Lembrou-se de seu pai: cuidado, Leontina, com a dose, uma dose a mais pode ser fatal. Eu, respondia Leontina, não quero largar esta boa vida tão cedo, e só tomo duas pilulazinhas, o suficiente para ter um sono tranqüilo e acordar toda rosada para meu maridinho.
Isso, pensou Margarida das Flores de Jardim, dormir um bom soninho e acordar rosada. Foi ao quarto de sua mãe, abriu uma gaveta do lado esquerdo da grande cama de casal – e realmente encontrou três vidros cheios de bolinhas. Ia tomar duas pílulas para amanhecer rosada. Não tinha nenhuma má intenção. Foi buscar a jarra e um copo. Abriu um dos vidros: tirou duas das pequenas pílulas. Tinha gosto de mofo e açúcar. Não notava em si a menor má intenção. Mas ninguém no mundo saberá. E agora para sempre não saberá julgar se foi por desequilíbrio ou enfim por um grande equilíbrio: copo após copo engoliu todas as pílulas dos três grandes vidros. Mas no segundo vidro pensou pela primeira vez na vida: “Eu”. E não era um simples ensaio: era na verdade um estréia. Toda ela enfim estreava. E antes mesmo que terminassem, já sentia uma coisa nas pernas, tão boa quanto nunca antes sentira. Ela nem sabia que era domingo. Não teve força para ir para o seu próprio quarto: deixou-se cair de través na cama onde a tinham gerado. Era um dia a menos. Vagamente pensou: se pelo menos Augusta tivesse deixado pronta uma torta de framboesa."
Clarice Lispector, 1977.
Meu pai queria um nome com A. Pensou Anastácia.
Minha mãe disse não.
Nome feio pra criança!
Mas quanto tempo na vida se passa criança?
1 Comentários:
Se eu fosse mulher me chamaria Ana Carolina. Acho que não ia gostar de Ana Carolina. Isabel ia combinar mais comigo...
Às 11:24 AM
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