...quem não presta sou eu
DOMINGO, ANTES DE DORMIR
“Aos domingos, a família ia ao cais do porto espiar os navios. Debruçavam-se na murada, e se o pai vivesse talvez ainda tivesse diante dos olhos a água oleosa, de tal modo ele fixava a água oleosa. As filhas se inquietavam obscuramente, chamavam-no para ver coisa melhor: olhe os navios, papai!, ensinavam-lhe elas inquietas. Quando escurecia, a cidade iluminada se tornava uma grande metrópole com banquinhos altos e giratórios em cada bar. A filha menor quis se sentar num dos bancos, o pai achou graça. E isso era alegre. Ela então fez mais graça e isto já não era tão alegre. Para beber, escolheu uma coisa que não fosse cara, se bem que o banco giratório encarecesse tudo. A família, de pé, esperava. A tímida e voraz curiosidade pela alegria. Foi quando conheceu ovomaltine de bar, nunca antes tal grosso luxo em copo alto, mais alteado pela espuma, o banco alto e incerto, the top of the world. Todos esperando. Lutou desde o princípio contra o enjôo mas foi até o fim, a responsabilidade perplexa da escolha infeliz, forçando-se a gostar do que deve ser gostado, desde então misturando, à mínima excelência de seu caráter, uma indecisão de coelho. Também a desconfiança assustada de que ovomaltine é bom, quem não presta sou eu. Mentiu que era ótimo porque de pé eles assistiam à experiência da felicidade cara: dela dependia que eles acreditassem ou não num mundo melhor? Mas tudo isso era rodeado pelo pai, e ela estava bem dentro dessa pequena terra na qual caminhar de mão dada era a família. De volta o pai disse: mesmo sem termos feito nada, gastamos tanto. Antes de adormecer, na cama, no escuro. Pela janela, no muro branco: a sombra gigantesca e flutuante dos ramos, como se de uma árvore enorme, que na verdade não existia no pátio, só existia um magro arbusto; ou era sombra da lua. Domingo foi sempre aquela noite imensa que gerou todos os outros domingos e gerou navios cargueiros e gerou água oleosa e gerou leite com espuma e gerou a lua e gerou a sombra gigantesca de uma árvore pequena.”
Clarice Lispector, Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Marcadores: clarice no cais
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