O melhor café você conhece pelo cheiro

sábado, 8 de dezembro de 2007

Cadernos de Eva

Acordei mais desperta, sabia que minha vontade de morrer estava se fingindo de morta. Anotei tomando por ritual tudo que fizera antes dela tomar tal atitude. Repetindo cada passo chegaria novamente ao estado em que me encontrava nessa manhã. O Sol não estava nem fraco nem forte demais. O céu era lindamente azul e no final qualquer nuvem estava indecisa se branca, se cinza, se branca, se cinza. Tomei um longo banho e cantei em favor de quem não me ouvia contra quem escutava minha voz aguda e desafinada. Sofria qualquer coisa no estômago que nem fiz muito alarde. Lavei agrassivamente o cabelo sujo de fumaça. Cada buraco meu foi tomado por espuma. Lavei também meu rosto. Três vezes. Ou mais. Mais. Enxuguei a espuma de cada buraco. Meus ouvidos. Água gelada de cima pra baixo. Para o último guardava um carinho especial. Afagos doces ainda com espuma. Depois vigorosos, seguidos de apertar meus seios duros contra o azuleijo gelado. Meu rosto, no azuleijo gelado. Cansei e ainda deixei minha mão sentir as contrações involuntárias. Um dia sem morte merecia comemorações. Da segunda vez foi mais fraco e meu rosto não se batia contra a parede. Eu até sorri. Lavei o rosto mais uma vez e terminei. A pior parte de terminar é pressentir que devo me vestir. Não era exatamente o que desejava. Vestido leve, branço de botões de madeira para ver o Sol. Imaginei o melhor lugar do mundo e desci, esperando ver o mar. O asfalto negro até lembrava o mar. Passei a andar. Andava sempre querendo me desviar dos lugares que já tinha passado. Talvez em algum momento pudesse ver o mar. Decide só parar ao ver o mar. Desdecidi ao me lembrar que o mais perto do mar que chegaria seria o valão. A meta seria a sede. Vou andar até sentir sede. Não sabia se era uma boa meta. Mas permaneci no esquema. Em certos pontos parava para desenhar certos prédios e árvores. As estranhas e velhas. Tinha uma que era só raiz. Tomou um muro como morada. Fincou-se ali. Nem lembro das folhas de tão bunita que era a raiz. Me livrei da árvore e continue andando. A licença poética é tão linda quanto o teatro. Posso dizer que naquele momento senti uma alegria tão intensa: "A ema gemeu no tronco do Jurema!" Não senti. Nada. Nem agora. É bom saber que me é permitido mentir e desmentir. Não tenho obrigação de qualquer espécie. Aliás, quando me livrei da árvore vi um carro branco. Ele parou bem na minha frente. O vidro era escuro, não conseguia ver quem estava dentro. Via meu rosto. Meu olho apertado de Sol, o céu com a árvore atrás. Sentia cheiro de mamona, o vento trazia e levava. O vidro abaixou devagar. Um sorriso enorme me esperava. Quer companhia? Ele abriu a porta. Eu entrei. Tchau, árvore. Comecei a sorrir também. Corre! Corre! Gargalhava. Ele me atendia e ria e ria! Sentia o vento tão forte. Coloquei a cabeça pra fora da janela, depois os braços também. Era tão bom! Alguma coisa nas minhas pernas. Fingi que nem era comigo. A mão dele era grande, com muitos pêlos. Olhei, olhava pra mão e ela cada vez mais próxima de estar dentro de mim. Olhei pro rosto. O sorriso. Sorri também. "Vamos pra onde?" Pra qualquer lugar, respondi. Eu vou. A mão continuava. Quer saber? Vamos pro cinema. O ar parou. Ele tirou a mão. Cansou dela e do sorriso também. Então eu fechei a janela e a cara. Cheiro de mamona. Eu gosto de mamona. "Hunfm." Abri meu primeiro botão. Você sentiu o cheiro. "Que cheiro?" Abri o segundo botão. Apertei meu mamilo por cima do vestido quase aberto. Voltou a sorrir. Eu não. Alisou o meu colo com o peito da mão. Abriu o meu terceiro botão. Apertou forte o meu seio. Eu sempre gostei. A gente fazia guerra de mamona quando era pequeno. Sempre gostei desse cheiro. E quando apertavam forte o meu peito. Ele era tão lindo e não ouvia uma palavra do que eu dizia. Não lembro se o quarto botão foi obra minha ou dele. O filme era em preto e branco. Câmara tímida de longe, o que é que ela tem medo de ver? Se você me mostrar cada ruga daquele velho prometo que não vou rir dos seus medos. Nem você nem ninguém percebeu seu olho. Ninguém olha em olho de velho. A gente não consegue também se encarar por muito tempo. Se eu olho esqueço do que estava falando e penso no que tô vendo. Me perco em você. Estou só. No cinema tem menos de dez, de cinco pessoas. O cinema tem a mim. Odeio saber que cinemas estão vazio, mas são esses que eu mais gosto de freqüentar. Por que você desapareceu? O filme não acaba, mas não quero esperar créditos porque se não vi o início não posso ver o final. Como vim parar aqui? Não cabe essa pergunta. Sei que estou aqui e com isso tenho que conviver, não posso lembrar do passado. Se pelo menos o carro branco tivesse do lado de fora da sala. Me esperando. Sei que não está. Por que ainda acredito nas mentiras que invento? Não sei se é noite, tarde ou dia. O cinema está frio e eu quero ir embora. Saber que não posso passar pela porta é a primeira coisa concreta de hoje. O cinema daqui é um sonho. E ninguém pode estar na minha frente. O cinema é meu. Talvez essa negação de ter alguém no meu cinema seja porque nunca houve ninguém ao meu lado. Gargalhada. Nem sei porque escolhi vir pra cá. Se venho você desaparece. Qual a melhor escolha? Gargalhada. Sabe que sempre tenho receio de quem senta ao meu lado? Não sei se é medo ou ansiedade. O medo ou a ansiedade de agora é virar pro lado. Não sinto nada no meu corpo. Não sei do meu corpo. Cadê a graça agora? A melhor parte do filme era a graça. Patética graça. O sorriso não está aqui. Então qualquer coisa me impedirá de sair antes que as luzes acendam. Um momento. Se eu descobrir como vim parar aqui poderia me absolver do crime de não terminar o filme. Não podia. Nada me absolveria dos meus crimes. Parece noite. Daqui não se pode saber. Mas sinto como noite. O lugar tem um cheiro engraçado, talvez alguma mulher sentada atrás de mim.

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