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terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Quinto fragmento


O sonho já teve caráter profético, a previsão do que virá. A comunicação com Deus. Enquanto José pensava rejeitar Maria que estava grávida, não dele, um anjo foi enviado aos seus sonhos dizendo que a recebesse em casa pois ela daria a luz a filho que salvaria o seu povo de seus pecados. Hoje José teria acordado e nem lembraria do sonho. Carpinteiros dormem pesado, estão cansados demais para sonhar. Ou, se lembrasse e comentasse com um cliente, este o indicaria ir a um psicanalista. Os sonhos são manifestações de nosso passado, o inverso de antes.
No Barroco o sonho é reflexo da ilusão em que vivemos. O mundo é um teatro. Teatro que talvez só cesse na morte. Não simplesmente mentira. Todos temos consciência que estamos sonhando, que estamos encenando. Rosaura encena o homem, depois encena a Astreia. Segismundo pertence ao mundo dos animais e do homem. Ofélia canta suas dores. Todos participam de alguma espécie de ilusão, de senho. O que será que existe, que se pode ver, sentir e o que será que não existe? O sonho não responde. Ele cria mais dúvidas.
Segismundo questiona sua própria vida e, por extenção, a existência humana: “o delito maior do homem é ter nascido” (CALDERÓN DE LA BARCA, 1973, 36). Por que é menos livre do que qualquer animal se tem alma, melhor instinto, maior arbítrio, maior vida? “Sou um homem entre as feras e uma fera dos homens” (idem, 39). Segismundo se coloca como fera-homem. Passeia entre os dois mundos: a natureza e o homem. Sua situação é ambígua até para si mesmo.
Neuza Sueli se questiona: “Poxa, será que eu sou gente?” (MARCOS, 1984, 39); Dilma tem o mesmo procedimento, acredita que são estabelecidas condições para se tornar humana: “Daí eu vou poder ser gente.” (MARCOS, 2003, 23). Nas personagens de Plínio Marcos vejo muito do Barroco. Elas tem por trás de si a imanência que possui o mundo barroco. Não têm possibilidade de salvação em Deus e a salvação profana só aparece para algumas delas. Dilma e Leda conseguem nos filhos a dimensão do príncipe, que contornaria a corrosão da história. Depositam suas fichas nos filhos como a corte confia no monarca. Além disso, por estarem em um mundo aquém da sociedade, pensar no mundo além do marginal é sonhar. O mesmo sonho de Segismundo, que não sabe o que o espera, mas anseia pela liberdade.
O movimento de animalização do príncipe, em A Vida é Sonho, se aproxima do sentimento que Hamlet descreve ao ver o espectro do pai: “Meu destino clama e enrijece cada fibra do meu corpo, como os nervos do leão de Neméia!” (SHAKESPEARE, 1978, 221). Ao encontrar o que tanto buscou, Hamlet se compara ao animal e não qualquer um, se compara ao mais selvagem animal mitológico. A natureza o guia. Como guia Segismundo, como guia a Dilma, a Leda, a Célia plinianas. O Barroco é o selvagem, o caos, o dionisíaco, o predomínio das paixões e do sentimento com esquematiza Kusano.
“Mostra-me um homem que não seja escravo de suas paixões e eu o colocarei no centro do meu coração” (idem, 258). Ao mesmo que se finge de louco, Hamlet fala com absurda lucidez da condição em que está entregue: escravo. A loucura é também permissão. Assim como ser fera é uma permissão. A loucura é também uma estratégia para obter poder (KOTT, 2003, 14).A fantasia, o sonho, a ilusão o teatro, Shakespeare toma para si o sonho também. É no sonho que Macbeth deveria dissipar as preocupações: “morte e vida a cada dia, banho após a dura labuta, bálsamos das almas doridas, principal alimento no banquete da grande natureza” (SHAKESPEARE, 1997, 35). No entanto, o sonho chega para ser o ladrão da liberdade: “Macbeth não dormirá mais nunca!” (idem, 36).

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