Um dia a menos - Luta I
Um Dia a Menos
1.
Margarida está deitada de costas no escuro. Abre e fecha os olhos.
2.
Margarida: O jornal. (Meio animada, vai pegar o jornal.)
Luta 1: Ela pega o jornal.
Margarida: (Lê no jornal) Margarida Flores, Rua General Isidro.
Luta 2: Vizinho pega o jornal.
Luta 3: Ela pega o jornal.
Margarida: (Lê no jornal) Margarida Flores...
Criança: (Correndo, arranca o jornal da mão dela e diz várias vezes.) Margarida Flores de Enterro.
Margarida: (Repreensiva) Margarida Flores de Jardim.
Voz: É que simplesmente as coisas não eram do seu lado. Pensou uma bobagem, até sua pequena cara era de lado. Em esquina. Nem pensava se era bonita ou feia. Ela era óbvia.
3.
Telefone toca.
Voz: Depois. Depois não tinha problemas de dinheiro. Depois havia o telefone.
Margarida faz que vai ligar para alguém.
Voz: Mas sempre que telefonava tinha a impressão nítida que estava sendo importuna. Por exemplo, interrompendo um abraço sexual. Ou então era importuna por falta de assunto.
Telefone toca.
Margarida: (Contendo o trêmulo da voz) Alô? Sim?
Telefone, voz macia de homem: É Margarida Flores de Jardim?
Margarida: (Feliz.) Margarida Flores de Bosques Floridos!
Voz: Para um drinque se deveria ir na certa vestida de modo mais audacioso, mais misterioso, mas pessoal, mais. (Pausa) Ela não era muito pessoal. E que incomodava um pouco, não muito. E, além do mais, o telefone não tocou.
4.
Homem: Flauta e Viola.
Margarida: (baixo) Flauta e viola.
5.
Voz: Hora do jantar! (Pausa) Hora de deitar!
Margarida entrou na cama, sob as cobertas. De olhos abertos. Movimento de abrir e fechar a mão. Pega as pílulas.
Pai: Cuidado, Leontina, com a dose. Uma dose a mais pode ser fatal.
Margarida: Eu, respondia Leontina, não quero largar esta boa vida tão cedo, e só tomo duas pilulazinhas, o suficiente para ter um sono tranqüilo e acordar toda rosada para meu maridinho (ri).
Voz: Não tinha nenhuma má intenção. Foi buscar um copo. Abriu um dos vidros: tirou duas das pequenas pílulas. Tinha gosto de mofo e açúcar. Não notava em si a menor má intenção.
Margarida: Eu.
6.
Margarida: (Fala de si mesmo como se fosse de outro.) Sempre há alguma coisa pela qual se guiar e arrumar. Diz falando de si, Ela fala de si mesma falando de outro. Também se inventa, pela companhia. Quanto a ela mesma, ela se guiava pelo fato de não ser casada, de ter a mesma empregada desde que nascera, de ser uma mulher de trinta anos de idade, pouco batom, roupa pálida... e que mais? Evitou depressa “o que mais” pois a essa pergunta cairia num sentimento muito egoísta e ingrato: sentir-se-ia só, o que era pecado porque quem tem Deus nunca está só. Tinha Deus, pois não era a única que o tinha? Fora Augusta.
7.
Margarida: (deitada de costas no escuro. Abre e fecha os olhos. Só uma pequena parte do que é dito pode ser comprovada.) Eu desconfio que a morte vem. Morte? Será que uma vez os tão longos dias terminem? Assim devaneio calma, quieta. Será que a morte é um blefe? Um truque da vida? É perseguição? E assim é.
(Silêncio.)
Voz: E não era um simples ensaio: era na verdade uma estréia. Toda ela enfim estreava. E antes mesmo que terminassem, já sentia uma coisa nas pernas, tão boa quanto nunca antes sentira.
Margarida: Eu.
Voz: Ela nem sabia que era domingo.
8.
Margarida fuma diante da televisão.
Voz: (A voz chega a ela ora de um lado ora de outro. Ora fraca e distante, ora um sussurro no seu ouvido. No curso de uma única frase pode mudar o local e o tom. Seus longos silêncios são outra característica.) Era um cigarro de marca cara, desse fumo louro, cigarrilha estreita e comprida, qualidade social de uma pessoa que não era por acaso ela. Aliás, por mero acaso, não era muitas coisas. E por mero acaso havia nascido. E depois? Depois. Depois. Pois então. Assim mesmo. Não é? (Pausa.)
Margarida: Então pois então é assim mesmo.
Augusta: Há melhoria depois.
Margarida: Assim mesmo havia já chegado de assim era.
9.
Telefone toca.
Voz: (para Margarida) Conte os passos e multiplique por dez. E some. Conte os passos.
Margarida corre rápido, depois diminui a velocidade bruscamente.
Voz: (Enquanto fala, Margarida corre rápido, depois diminui a velocidade bruscamente.) Ela costumava contar as coisas, por uma espécie de mania de ordem, afinal inócua e até divertida. Acha consolo nos números. Partes de um certo ritmo cardíaco e calcula quantas batidas por dia. Por semana. Por mês. Por ano. E, calculando um certo tempo de vida, por toda a vida. Até a última batida.
Margarida: (estaca) ACONTECEU! Juro!
Telefone toca 4 vezes.Sente uma dor no peito a cada toque.
Margarida: (com voz bem negligente) Alô...
Constança: Por obséquio, por favor, pode chamar ao aparelho para mim a Flávia? Meu nome é Constança.
Margarida: (Inflexão monótona. Sem vida. Sempre a mesma inflexão monótona.) Madame Constança, sinto lhe informar que nesta casa não vive ninguém com o nome de Flávia, sei que Flávia é um nome muito romântico, mas é que não tem aqui nenhuma, que é que eu posso fazer?
Constança: Mas essa não é a rua General Isidro?
Margarida: É, sim, mas que número de telefone pediu? O quê? O meu? Mas lhe asseguro que moro aqui há exatamente trinta nos, quando nasci, e nunca houve nesta casa nenhuma jovem chamada Flávia.
Constança: Como é o seu nome?
Margarida: Margarida Flores do Jardim.
Constança: Por quê? Há flores no jardim?
Margarida: Ah, ah, ah, a senhora tem bom humor! Não, não há, flores no jardim mas é que meu nome é florido.
Constança: E isso adianta alguma coisa? (Pausa) Adianta ou não adianta, enfim?
Margarida: É que não sei responder porque nunca tinha antes pensado nisso. Só sei responder coisas que já pensei. E creio que é tempo da senhora desligar porque a essa hora meu chá deve estar gelado.
Constança: Chá às três horas da tarde? Bem se vê que você não tem a mínima classe, e eu a pensar que você pudesse ter estudado na Inglaterra e que soubesse pelo menos a que horas se toma chá!
Margarida: O chá é porque eu não tinha o que fazer. (Pausa) Madame Constança. E agora eu lhe imploro em nome de Deus que não me torture mais, imploro de joelhos que desligue o telefone para eu acabar de tomar meu chá brasileiro.
Constança: Ah! Tive uma idéia! Já que Flávia saiu, por que é que você não vem à minha casa para umas carteadas a dinheiro baixo? Hein? Que acha? Não se sente tentada? E que acha de distrair uma senhora já de certa idade?
Margarida: Meu Deus, não sei jogar jogo nenhum.
Constança: Mas como não?!
Margarida: É isso mesmo. É como não.
Constança: E a que se deve essa falha na sua educação?
Margarida: Meu pai era estrito: na sua casa não entravam vícios de baralho.
Constança: Se me permite dizer eu acho que...
Margarida: Não! Não lhe permito dizer! E quem vai desligar o telefone sou eu mesma, com licença de sua madame (deixou o telefone fora do gancho).
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