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sexta-feira, 4 de julho de 2008




ANTE

As Ondas

Projeto de encenação




Teatro Impressionista

Por todos os textos lidos e discussões em sala de aula vejo que é no mínimo complicado obter um teatro que possa ser chamado de impressionista. O próprio movimento de pintores não era homogêneo suficiente para que todos fossem chamados impressionistas sem levantar discussões. Até mesmo o próprio Monet, considerado o impressionista por excelência, não foi fiel ao que produzia no início até o fim da vida. Como não se pode determinar o impressionismo nem mesmo dentro do espaço que ele foi criado, como posso produzir um teatro juntando alguns conceitos e ditar impressionista?

A partir da leitura de As Ondas pude notar certas características comuns aos textos de suporte e pretendo me utilizar delas para o projeto de encenação. A escolha do tema: o meio ambiente cíclico, fugaz, evanescente das ondas e da vida humana. A estrutura do romance: sem um narrador que seria o ponto de vista único e irredutível, apenas algumas Vozes que falam de sensações, impressões, antes mesmo de desencadear diálogos. A dissolução das Vozes na própria paisagem do mar (e da natureza em geral) sendo elas também ondas que se sobrepõe umas às outras e deixam de existir para integrar o enorme oceano. Essas características, dentre outras, me levam à criação de um teatro que não pretendo aqui delimitar. Não seria incoerência de minha parte produzir um rótulo que limitasse, fechasse uma experiência teatral, tendo discutido tantas vezes sobre o momento indefinido, a fugacidade e indeterminação dos objetos de representação? Seria talvez como traçar linhas de contorno nos quadros de Monet. Deixo para quem não consegue analisar sem rotular a tarefa de chamar o teatro do que quer que seja.

Espaço

Em “As Ondas” temos seis Vozes centrais que não demonstram nenhuma delas qualquer característica própria a protagonistas. Todas as Vozes expressam suas impressões dos acontecimentos externos e sensoriais sem criar qualquer pólo ou distinção. Todos são iguais. São unicamente visões diferentes. Várias vezes uma Voz relata um fato que na fala seguinte outra comenta, sem haver, no entanto, qualquer predominância de visão.

Para alcançar o efeito de múltiplas visões me passou pela cabeça a encenação de Não Sobre o Amor de Felipe Hirsch (Anexo -Figura1). Um cenário que não forma uma unidade de vista: ele usa a visão lateral, superior (uma cama, ou mesa pregados na parede), etc. No entanto, ao optar pela simultaneidade das visões acabaria criando uma terceira visão_ uma união de todas elas_ que fugiria da idéia imprecisa que o romance traz de cada portador de Voz. Trabalhar com a simultaneidade, nesse caso, seria determinar o que pretendo que a assistência descubra por si só, estampando a minha impressão, que seria, portanto, uma sétima Voz, unificadora de todas as outras. Acredito que o mais rico encontro teatral seria que cada imagem vocal fosse representada única e pura, dando a oportunidade da criação por parte da platéia. Suponho também que não será através de um cenário que alcançarei isso.

Chegando a outro lugar, para a obtenção desse efeito, pensando em por agora a me ater a recursos essencialmente teatrais (excluindo, então, projeções, vídeos, etc.), seria a distribuição do público no mesmo local da encenação. Um lugar circular que contivesse os assentos dispersos espacialmente, proporcionando assim a natural obtenção de várias visões por parte do público (Similar espaço foi desenvolvido por Ana Kfouri em Sfíncter.). Além disso, o número de assentos seria superior ao número de espectadores, dando a liberdade de movimentação inclusive durante a cena (Anexo - Figura 2). Ao contrário do que palco italiano poderia me dar, onde (com alguma distorção) todas as pessoas da platéia veriam ao mesmo espetáculo, a mesma impressão em essência.

Essa geografia do público completaria seu objetivo quando na cena eu me aliasse a repetição. Nos momentos do texto em que as Vozes se referem ao mesmo momento no tempo, cada um delas abarcaria um conjunto de pessoas e falaria para elas, ao final seria feito um rodízio, onde as Vozes trocariam de grupo de espectadores, apresentando a mesma cena. Isso se repetiria quantas vezes eu achasse necessário, de modo que cada espectador pudesse ver mais de uma Voz em cena. E, como a repetição não seria necessariamente 6 vezes (assim como no romance, onde 2 ou 3 Vozes falam de um momento, sem obrigatoriamente todas falarem), algumas Vozes estariam caladas no primeiro plano, praticando ações de acordo com suas figuras construídas.

Seria dado ao espectador observar mais de uma cena na mais ampla visão ou “burlar” esse sistema e observar uma Voz que esteja se dirigindo a outro grupo de espectadores. A liberdade de visões estaria nas mãos do espectador que poderia ainda mudar de lugar (o que seria incentivado) durante o espetáculo e acompanhar, por exemplo, somente uma das Vozes.

Ciclo – Momentos eternos

As escolhas dos objetos de observação dos pintores impressionistas, segundo Schapiro, era em princípio um pretexto para a aplicação do modo de representação. O Impressionismo era um “movimento que deu início à concepção moderna da pintura como arte da cor e que foi reputada como indiferente ao conteúdo da representação.” (SCHAPIRO, 2002, p. 24). Mais a frente o mesmo autor coloca que mais que um pretexto os temas eram “textos de percepção” (Idem, p. 32). Generalizando, os temas eram de meio ambiente por dois motivos: por ser um ”campo de liberdade de movimento” e por ser objeto de “deleite sensorial” (Idem). O que tem de tão interessante em observar a natureza?

A natureza está em constante ciclo, fluxo, movimento. A cada instante, estando no mesmo lugar, uma nova cena é vista e pode ser eternizada pelo artista. O mesmo acontece nas Ondas, a rotação da Terra em torno de si produzindo o dia é colocada junto de outro ciclo: o ciclo da vida humana. Ao colocar os dois ciclos em comparação se reduz a vida humana ao fugaz, como o nascer e pôr do sol. Estando no mesmo patamar que o meio ambiente, não apresentando maior importância do que a criação de um dia e sendo tão cíclica e fugaz como ele posso colocar a vida dessas seis Vozes como mais um objeto de meio ambiente representado por impressionistas.

A escolha de observação de algo cíclico e fugaz leva a valorização do momento. Como o momento não poderá se repetir deve-se captar todas as impressões possíveis para que o deleite sensorial possa se repetir, para que o momento possa ser eternizado.

Ao mesmo tempo em que há a vontade de eternizar cada momento ela não extrapola ao ponto de hierarquizar momentos. Todos eles são caros e, portanto, todas estão no mesmo patamar. Para observação plena de cada momento Virginia Woolf opta, na esmagadora maioria das vezes, pelo tempo verbal presente. Esse tempo verbal imprime o caráter imediato e traz uma eterna atualidade, colocando o acontecimento acima do fluir do tempo, “como um momento inalterado, como presença intemporal” (ROSENFELD, 1994, p. 24).[1]

A transmissão do caráter eterno de cada momento e seu pertencimento a um movimento cíclico seria entendido por vários pontos da encenação. Talvez o mais visível seja a própria estrutura do romance que nos apresenta da infância à velhice cada um das Vozes. A construção corporal para cada momento vai ser levada ao extremo da impressão. Os mesmos atores farão as Vozes em cada um dos momentos da vida, portanto, um corpo disponível para experimentação cênica é fundamental. Porém, a pura representação mecânica de trejeitos observados em cada idade pode arruinar o objetivo maior da encenação que seria TENTAR um teatro de cunho impressionista. Para fugir da cópia naturalista partiria desse pressuposto nos meus jogos e exercícios teatrais: “El espectador posee la facultad de completar la alusión por su propia imaginación. A muchos les atrae el teatro por su misterio y deseo de penetrarlo.” (MEYERHOLD, 2003, p. 36) Com essa máxima de interpretação a pesquisa iria ser guiada para a obtenção do sutil, da alusão, da delicadeza, alcançada através de estímulos sensoriais.

A infância seria a explosão dos sentidos. Mesmo que a identificação real com crianças da parte do espectador seja difícil, esse ponto da infância me parece suficiente. Acredito que da mesma forma que as sensações ativarão memórias dos atores durante o processo, elas devem ativar memórias do público. A descoberta, a novidade, poderia também ser experimentada pelo público, por exemplo, através da predominância de um sentido sobre os outros: O espaço cênico é colocado na total escuridão e os atores passam a tocar nos espectadores ativando o tato; ou produzem sons incomuns ativando a audição.

Quanto mais a velhice se aproxima, os sentidos vão deixando de ser tão vivos e passam à anestesia. A visão se torna mais fraca, logo as luzes poderiam mais ainda levar a indefinição de formas, a mistura de cores (fazendo um paralelo com a última fase da vida de Claude Monet.); a audição também diminui podendo mesmo ser extinta, imagem de uma gesticulação de falar acontece mas o som não é ouvido; enfim, a explosão de sentidos da infância seria amenizada, no entanto, mesmo com poucos sentidos (e talvez por causa disso) as impressões continuem vivas.

Dissolução I

Como já disse acima, o mar é um tema comum aos impressionistas porque ele traz viva a questão do momento, o instante rápido onde tudo acontece para no segundo seguinte desaparecer, uma sucessão de pequenos encontros que nunca são iguais. Há outra questão acerca do mar (e de todas outras paisagens) que não foi explorada aqui ainda: o desaparecimento.

Por que não se vê personagem principal em As Ondas?[2] Por que a intervenção narrativa se propõe unicamente a descrever a natureza, sem interferir como o nosso velho narrador onisciente? Se definisse cada figura do romance, a autora fugiria a idéia do desaparecimento na paisagem que é tão valiosa na estrutura da obra. As Vozes antes de serem pessoas propriamente ditas são pequenos elementos constituintes de um todo. A permissão de ser peça contida na paisagem é a permissão de não ser dono de situações; de responder ao acaso, estar entregue; do conhecimento através do delicado. “Ao invés de pensar, caminhar; salvar-se no mundo das coisas e não apenas ser voyer ou consumidor, deixando rastros, idéias para trás a cada novo momento, a cada encontro; renovar-se constantemente, mesmo que seja num modesto passeio, um deixar-se, uma dissolução, mesmo quando voltamos para casa.” (LOPES, 2008, p. 136).

Dissolução II

Não sei como posso imprimir a característica da pintura impressionista de fusão paisagem-pessoas na interpretação dos atores. Quando Woolf faz isso no romance ela usa a mais cara das técnicas e mais eficaz: a imaginação do leitor. “Pego um caule na mão. Sou o caule. Minhas raízes descem às profundezas do mundo, varando a terra seca e a terra úmida (...)” (WOOLF, 1991, p.10) Nesse momento eu como leitora vejo Louis da forma que ele se descreve e, no momento seguinte, se ele se descreve de outra forma eu num instante já o vejo de outra maneira. O que acontece é que não posso usar esse recurso dessa forma no teatro. Posso usar maquiagem e figurino, a luz e o cenário e criar o objeto Louis-paisagem que como leitora imaginei. Mas não seria sincero pois eu roubaria esse momento mágico que eu tive ao imaginá-lo das pessoas que assistem. Sendo assim, poderia manter o ator parado em estado neutro falando o seu momento como Louis-paisagem para que o espectador o imagine, compartilhando o momento de descoberta com ele. Porém, o espectador acabaria se colocando no lugar de leitor, deixando de lado o acontecimento teatral para alcançar o acontecimento literário.

Como não posso, então, transformar atores em paisagem, pretendo transformar paisagem em atores. Nos momentos em que as Vozes se confundem com a paisagem, como: “Lancei meu buquê de flores na onda que se espraiava e disse: ‘Consome-me, carregue-me até o limite mais distante. ’” (WOOLF, 1991, p. 153) usarei um coro de atores, ocupando todo o espaço do chão (ou da parede, por exemplo) e a Voz estaria sobre os corpos, de dissolvendo neles como se dissolveria no mar ou nas plantas do jardim. Pode ser utilizada ainda a multiplicação de vozes através de jogral para que o ator que interpreta a Voz seja realmente diluído na paisagem.


Anteprojeto de encenação

Por esse projeto fazer parte de uma prova de comprovação de leituras e assimilação de conceitos, não considero como projeto objetivo suficiente para que seja posto diretamente em prática.

Por mais que eu acredite que uma peça precise ter um embasamento teórico, uma proposta eficaz de fato para a cena tem um longo desenvolvimento prático e apenas algumas pinceladas teóricas. Se dá exatamente o contrário nesse momento.

Enquadro como útil à discussão de idéias: em muitos momentos as propostas concretas surgiram após eu ter começado a escrever, no processo de discussão dos temas em que dividi o trabalho.

Por esse caráter teórico e processual prefiro classificar esse trabalho como anteprojeto de encenação de As Ondas do que propriamente o projeto.


Anexo

Figura 1

Não Sobre o Amor de Felipe Hirsch

Vista lateral da mesa

Vista superior da cama

Figura 2

Planta baixa:




Bibliografia

LOPES. Denilson. "Paisagens e Narrativas" in A Deliicadeza: Estetica. Experiência e Paisagem. Brasilia, Ed. UNB, 2007.

MEYERHOLD, V E. "Teatro Naturalista y Teatro de Atmosfera" in Teoria Teatral. 7ª ed .Madri. Fundamentos. 2003.

ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 1994.

SCHAPIRO, Meyer. Impressionismo. São Paulo, Cosac & Naify, 2002,21.56

WOOLF, Virginia. As Ondas. 3.ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991.

Imagens:

Capa: Claude Monet - La Promenade Sur La Falaise

Anexo - Figura 1: Foto: Carol Sachs. Atriz: Arieta Corrêa.



[1] Um exemplo do não uso do presente está em uma fala de Louis “Percival morreu (morreu no Egito, morreu na Grécia; todas as mortes são umas só morte.) Susan tem filhos; Neville sobe rapidamente para as alturas notáveis. A vida passa”(WOOLF, 1991, p. 126). A morte não pode ser um momento eternizado porque ela é o contrário da vida, a vida é eterna, esta é cíclica. Localizar a morte dentro do tempo faz com que a vida se torne mais vida. E Woolf faz isso ao colocar na mesma fala uma morte e um nascimento (os filhos de Susan). A vida continua e com seus momentos eternos, apesar dessas quebras que somente traduzem a continuidade.

[2] Eu diria mais: Por que não tem personagem regularmente definido em As Ondas?

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